A READEQUAÇÃO DAS RELAÇÕES CONTRATUAIS EM FACE DA
PANDEMIA DO COVID-19
VALDERIANE SCHIMICOVIAKI, advogada, Pós-Graduada em Direito do Trabalho
RESUMO
Trata-se o presente artigo de uma
breve exposição sobre os principais pontos de debates acerca da necessidade de
readequar as relações contratuais ao novo contexto da pandemia provocada pelo COVID-19,
usualmente denominado de novo coronavírus.
A flexibilização de algumas
normativas adotadas em tempos de normalidade, como princípios basilares do Direito
contratual, é vista como necessária para alguns e totalmente inadequada para
outros. Contudo, não se pode negar que o contexto dos últimos meses afetou e
continua afetando as relações contratuais realizadas em nosso país.
As principais dúvidas emergentes
dessa nova realidade são a respeito do próprio cumprimento do contrato, ou
seja, ainda se faz necessário o seu adimplemento ou devido a suspensão de
variadas atividades também estaria presumida a impossibilidade de seguir com as
obrigações estabelecidas?
Pois bem, no presente artigo será
apresentada a principal divergência no que se refere ao debate acerca do
adimplemento das relações contratuais.
1. INTRODUÇÃO
O contrato é o grande meio de se
estabelecer, consensualmente, obrigações entre duas pessoas (físicas e/ou
jurídicas), visto ser um negócio jurídico bilateral que permeia todas as
esferas do Direito Privado.
Assim, é impossível negar a
relevância do referido instrumento para manutenção das atividades comerciais
que sustentam nossa sociedade e, consequentemente, a economia do nosso país.
Desse modo, o isolamento decorrente da
pandemia de escala mundial do COVID-19, claramente afeta as relações
contratuais e exige, por parte do Direito, modificações provisórias e
temporárias a fim de se evitar prejuízos aos negociantes.
Portanto, passemos à análise dos
principais pontos de debate das relações contratuais na pandemia.
2. PRESSUPOSTOS DAS RELAÇÕES CONTRATUAIS
A princípio, visto que o objetivo do
presente trabalho é a discussão da readequação das relações contratuais, para
que isso seja possível, é necessário o conhecimento dos seus pressupostos. Sendo
assim, visa-se demonstrar, por ora e de maneira breve, os princípios bases do
Direito Contratual.
Paulo Lôbo os separam em duas
esferas, correspondendo elas à individual e à social. Na primeira enquadra-se
os princípios da autonomia privada, da força obrigatória e da relatividade dos
efeitos do contrato, enquanto que na segunda, se faz presente os princípios da
função social, da boa-fé objetiva e também da equivalência material.[1]
Focaremos para a continuidade do trabalho nos princípios da força obrigatória
do contrato, da função social do contrato e da boa-fé objetiva.
O princípio da força obrigatória é
um dos mais clássicos,[2]
uma vez que sustenta e exige dos contraentes o devido cumprimento do contrato
nos moldes estipulados, sob pena da parte inadimplente ser obrigada a cumprir
em sede judicial ou ainda, obrigada a pagar indenização por perdas e danos.
Já a função social do contrato
promove o dever de se atentar, ao estabelecimento da relação jurídica
obrigacional, aos efeitos positivos e negativos à sociedade que serão
decorrentes do contrato, bem como à existência da finalidade social exigida.[3]
Por fim, a boa-fé objetiva faz
incidir, aos dois polos da relação, deveres de proteção, tais como o de
informação, lealdade, cooperação, dentre outros, que precisam ser observados na
fase pré-contratual, contratual e até mesmo pós-contratual, a fim de que ocorra
o adimplemento absoluto.
Adiante, como se verá no próximo
tópico, o debate atual sobre a incidência integral dos princípios mencionados,
em tempos de crise, fez emergir duas linhas principais de entendimento, uma que
visa atenuar e determinar regras gerais a todas relações contratuais e outra
que se desenvolve a partir de modificações pontuais, partindo de uma análise
empírica dos casos concretos.[4]
2.1. NECESSÁRIAS ADEQUAÇÕES NAS RELAÇÕES
CONTRATUAIS DEVIDO A ATUAL CONJUNTURA DO NOVO CORONAVÍRUS
A partir dos pressupostos elencados
anteriormente, pode-se afirmar que o centro do atual debate percorre ao
princípio da força obrigatória dos contratos, posto que a sua incidência garante
às partes o cumprimento do negócio pactuado. Contudo, assim como mencionado alhures,
a interferência da crise do Coronavírus nas relações comerciais e na própria
economia é uma realidade, a qual está sendo considerada um óbice ao devido
adimplemento contratual.
Sendo assim, pensar em readequação
das relações contratuais é pensar se essas relações precisam apenas serem
extintas, assumindo que o cumprimento não será possível de modo algum ou é
deixar generalizações de lado e partir para análise contundente do que pode ser
feito ou não em um determinado caso específico. Desse modo, retomando as duas
vertentes mencionadas ao final do tópico anterior, é necessário que o Direito
seja perspicaz para que se evite eventuais oportunismos de um dos contratantes,
o que nos leva a crer, portanto, que seja mais viável a análise do caso
concreto para determinar eventuais mitigações às normas normalmente aplicadas.
Outro grande receio que paira em
torno da possibilidade de não aplicação (temporária) do princípio da força
obrigatória, é os efeitos que dada atenuação promoverá em um momento pós-crise,
embora se saiba que eventuais medidas possuem apenas um caráter provisório para
o tempo da pandemia[5].[6]
A possibilidade da crise ser
considerada um obstáculo para o adequado cumprimento das obrigações instiga a
análise dos artigos 317,[7]
478,[8]
479[9] e
480[10] do
nosso Código Civil entrando-se na seara da resolução e revisão contratual
devido às consequências de eventos extraordinários, bem como a do artigo 393
que dispõe sobre a não responsabilização do devedor em caso fortuito ou força
maior.[11] Ademais,
também resta presente a boa-fé objetiva instigada pelo Código no art. 422[12] a
fim de que as partes solucionem eventuais dificuldades sem provocar prejuízos
exorbitantes e desiguais.
Todavia, deve-se ter muito evidente
que a simples menção à pandemia não será argumento válido para sustentar o não
cumprimento da obrigação, bem como, não será argumento preciso para o pleito de
revisão contratual. Isso porque se deve
comprovar, no primeiro caso, que decorrente desse acontecimento extraordinário
houve uma modificação substancial na esfera econômica das partes negociantes,
que impossibilita a prestação e/ou a contraprestação acordada, por conta de uma
onerosidade excessiva. Do mesmo modo, no segundo caso, mesmo partindo do
pressuposto de que a pandemia ou a determinação governamental de isolamento e
quarentena constituem um fato imprevisível ou inevitável, deve-se demonstrar
que o fato corroborou diretamente para a ausência de adimplemento. Em suma,
percebe-se que em ambos os casos não se é possível partir de uma perspectiva
geral e ampla, posto que cada relação contratual estabelecida possui interesses
e obrigações próprias.
Ademais, reforçando o aspecto
exposto, ao tratar sobre os que defendem ser a pandemia um caso de força maior
defronte os quais o enxergam como um fato extraordinário, Anderson Schreiber
coloca que:
É
preciso, antes de se qualificar
acontecimentos em teoria, compreender o que aconteceu em cada contrato:
houve efetivamente impossibilidade de cumprimento da prestação pelo devedor? Ou
– hipótese que será necessariamente diversa – houve excessiva onerosidade para
o cumprimento da prestação? Ou houve, ainda, algum impacto diverso sobre a
relação contratual (como a frustração do fim contratual, o inadimplemento
antecipado etc.)? Ou não houve, como é possível, impacto algum? São situações completamente distintas que
somente podem ser aferidas à luz de cada contrato e é somente após a
verificação do que ocorreu em cada
relação contratual que se deve perquirir a causa (ou as causas) de tal
ocorrência.[13]
O mesmo acaba sendo concluído quando
façamos a análise do instituto da mora, posto que, devido a quarentena e isolamento
social previamente cotado como umas das maneiras de combater a pandemia e dirimir
a sua proliferação, conforme a Lei nº 13.979/2020, acaba dificultando o
cumprimento da obrigação em tempo certo, como, por exemplo, a entrega de algum
bem móvel comprado, a finalização de alguma construção, ou ainda, a
impossibilidade de deslocamento para recebimento do pagamento em lugar quesível,
quando este for em outra cidade.
No entanto, novamente não se pode
presumir que em todas as situações há possibilidade de mora sem as devidas
consequências estabelecidas pela Regra do Inadimplemento, com o fim de se
evitar situações de má-fé de um dos contraentes.
3. CONCLUSÃO
Em virtude do que foi discorrido,
percebe-se a relevância temática das consequências da pandemia às relações jurídicas
privadas e, de modo conjunto, também se evidencia a preocupação que eventuais
medidas temporárias acarretarão a longo prazo.
A disciplina do Direito
Obrigacional, como já mencionado em outros trabalhos, é extremamente ampla e
seu principal objetivo é fazer com que as relações jurídicas realizadas sejam
cumpridas, ou seja, a partir do vínculo jurídico criado pelas partes através do
contrato, estas encontram-se obrigadas a cumpri-lo. Assim sendo, o adimplemento
é o ponto chave do debate e dos receios emergidos a partir das consequências
negativas acarretadas pelo surto mundial do COVID-19.
[1]
LÔBO, Paulo. Direito civil: Contratos. – 5ª ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 59.
[2]
Também denominada de pacta sunt servanda.
[3]
Art. 421, CC. A liberdade contratual será exercida nos
limites da função social do contrato.
[4]
TARTUCE, Flávio. O
coronavírus e os contratos - Extinção, revisão e conservação - Boa-fé, bom
senso e solidariedade. Portal Migalhas.
Publicado em 27/03/2020. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/322919/o-coronavirus-e-os-contratos-extincao-revisao-e-conservacao-boa-fe-bom-senso-e-solidariedade>. Acesso em: 07/04/2020.
[5] “Cessada a fase
crítica da crise, inevitável deverá ser a reafirmação da força obrigatória dos
contratos, como instrumento a gerar a necessária segurança que, em si mesma, é
incentivo à atividade econômica. (...) No pós-crise, é necessário reforçar a aposta
na livre iniciativa, cujo valor social é intrinsecamente reconhecido como
fundamento da República. Que o vírus da pandemia, após debelado, não se
converta no vírus do desmedido dirigismo”. PIANOVSKI, Carlos Eduardo. A força
obrigatória dos contratos nos tempos do coronavírus. Portal Migalhas. Publicado em: 26/03/2020. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/322653/a-forca-obrigatoria-dos-contratos-nos-tempos-do-coronavirus>. Acesso em: 08/04/2020.
[6]
Inclusive, essa premissa
ronda o Projeto de Lei 1.179/2020 que visa estabelecer modificações temporárias
às relações jurídicas de Direito Privado.
[7] Art. 317. Quando, por motivos
imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação
devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da
parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
[8]
Art. 478. Nos contratos
de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar
excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de
acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a
resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data
da citação.
[9] Art. 479. A resolução poderá
ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do
contrato.
[10]
Art. 480. Se no contrato
as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua
prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a
onerosidade excessiva.
[11]
Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos
resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por
eles responsabilizado.
[12] Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do
contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
[13] SCHREIBER, Anderson. Devagar
com o andor: coronavírus e contratos - Importância da boa-fé e do dever de
renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional. Portal Migalhas. Publicado em:
23/03/2020. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/322357/devagar-com-o-andor-coronavirus-e-contratos-importancia-da-boa-fe-e-do-dever-de-renegociar-antes-de-cogitar-de-qualquer-medida-terminativa-ou-revisional>