Autores: WINDERSON JASTER, especialista em Direito de Família e Sucessões, Direito Imobiliário e Direito Aplicado na Escola de Magistratura do Paraná e VALDERIANE SCHIMICOVIAKI, advogada, Pós-Graduada em Direito do Trabalho
ADOÇÃO
À BRASILEIRA E ADOÇÃO INTUITU PERSONAE:
A
FLEXIBILIZAÇÃO JUDICIAL EM FACE DO MELHOR INTERESSE DO MENOR
RESUMO:
O presente
informativo tem por objetivo dar um panorama geral acerca da adoção, em seu
sentido jurídico, no Brasil, analisando os diplomas legais que regulam o
instituto e sua relação com o Direito de Família. Sem prejuízo, investiga-se
duas modalidades, dentre outras, da adoção, quais sejam, a adoção à brasileira
e a adoção intuitu personae. Nesse
sentido, examina-se as particularidades de cada um, visualizando de que maneira
os tribunais pátrios vêm os julgando sob a égide do princípio do melhor
interesse do menor.
Palavras-chave: Adoção; adoção à brasileira;
adoção intuitu personae.
Sumário: I. Adoção e sua
regulamentação; II. Adoção à brasileira; III. Adoção intuitu personae; IV. Conclusão.
I
- ADOÇÃO E SUA
REGULAMENTAÇÃO
O estado de
filiação pode decorrer de duas possibilidades diferentes: (i) de fato,
isto é, em decorrência da própria natureza, o nascimento do menor; ou (ii) de ato jurídico, qual seja, a adoção - objeto do presente informativo
-, que apenas se concretiza com
decisão judicial.
Desde já, pode-se
ver uma das características da adoção, em seu sentido jurídico: trata-se de um
ato jurídico em sentido estrito solene. Ato jurídico em sentido estrito, porque
não tem conteúdo negocial, constituindo-se por manifestação de vontade com efeitos
já previstos em lei. Solene, porque exige observância de procedimento prescrito
em lei, neste caso, do Estatuto da Criança e do Adolescente.
É, portanto, uma
ficção jurídica, uma vez que cria um estado de filiação que não é natural. Nas
palavras de Carlos Roberto Gonçalves a adoção é "ato jurídico solene pelo
qual alguém recebe em sua família, na qualidade de filho, pessoa a ela
estranha".[1]
No ordenamento
jurídico brasileiro, o principal diploma que trata do assunto: o Estatuto da
Criança e do Adolescente de 1990 (ECA). O Código Civil regulava também a
adoção, porém, com a edição da Lei n. 12.010/09 - que, também, aperfeiçoa diversos dispositivos do
ECA -, seu conteúdo se reduziu a
declarar que o instituto da adoção seria regulado pelo ECA.[2]
O ECA já inicia
colocando a adoção como ultima ratio (art.
39, §1º):
§ 1 o A adoção
é medida excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando
esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família
natural ou extensa, na forma do parágrafo único do art. 25 desta Lei.
O efeito jurídico é
colocado logo em seguida, justificando ser a adoção ato jurídico. O efeito
principal, por óbvio, é a atribuição da condição de filho e, consequentemente,
goza dos mesmos direitos e deveres que um filho tem perante sua família:
Art.
41. A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e
deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e
parentes, salvo os impedimentos matrimoniais.
§ 1º Se um dos cônjuges ou concubinos adota o filho do
outro, mantêm-se os vínculos de filiação entre o adotado e o cônjuge ou
concubino do adotante e os respectivos parentes.
§ 2º É recíproco o direito sucessório entre o adotado, seus
descendentes, o adotante, seus ascendentes, descendentes e colaterais até o 4º
grau, observada a ordem de vocação hereditária.
Adiante, o Estatuto
traz pormenorizadamente requisitos para a adoção, bem como o seu procedimento.
Como requisitos, a exemplo: há de se ter consentimento dos pais biológicos do
adotado, salvo se são desconhecidos ou destituídos do poder familiar (art. 45,
§1º); caso o adotado tenha mais de doze anos, há de se ter também seu
consentimento (art. 45, §2º); a adoção tem que trazer reais vantagens ao menor
e fundar-se em motivos legítimos (art. 43); o menor não pode ser adotado por
seus ascendententes ou irmãos (art. 42, §1º); só se pode adotar menores de 18
anos (art. 42, caput); entre outros.
Quanto ao
procedimento, novamente o Estatuto se mostra bastante analítico. Veja-se, por
exemplo, que a adoção para se concretizar há de que se passar um período de
convivência prévio:
Art. 46. A adoção será precedida de
estágio de convivência com a criança ou adolescente, pelo prazo máximo de 90
(noventa) dias, observadas a idade da criança ou adolescente e as
peculiaridades do caso.
§ 1 o O estágio de convivência
poderá ser dispensado se o adotando já estiver sob a tutela ou guarda legal do
adotante durante tempo suficiente para que seja possível avaliar a conveniência
da constituição do vínculo.
§
2 o. A simples guarda de fato não autoriza, por si
só, a dispensa da realização do estágio de convivência.
§ 2 o-A. O
prazo máximo estabelecido no caput deste artigo pode ser
prorrogado por até igual período, mediante decisão fundamentada da autoridade
judiciária.
Ademais, passado
por tudo isso, para de fato haver a efetivação do estado de filiação, há a
necessidade de sentença judicial e do trânsito em julgado:
Art. 47. O vínculo da adoção constitui-se
por sentença judicial, que será inscrita no registro civil mediante mandado do
qual não se fornecerá certidão.
§ 7 o A adoção
produz seus efeitos a partir do trânsito em julgado da sentença constitutiva,
exceto na hipótese prevista no § 6 o do art. 42
desta Lei, caso em que terá força retroativa à data do óbito.
Verifica-se, dada a
(i) lei específica de regulação, (ii) a quantidade de requisitos e (iii) a
extensão do procedimento, o quanto o legislador considerou a adoção como
situação delicada, merecedora de ampla e segura tutela jurídica. Mais:
evidencia como realmente deve ser a ultima
ratio.
II
- ADOÇÃO À
BRASILEIRA
Ocorre, no entanto,
que todos os requisitos e procedimentos tornam o processo muito moroso, quando
não impossível. Veja-se que no Brasil, de acordo com dados do CNJ, existem
46.064 pretendentes para 9.223 crianças em abrigos.[3] A
proporção é de uma criança a cada cinco pretendentes. Ainda assim, a soma entre
as exigências dos pretendentes sobre a criança que quer adotar (raça, sexo,
idade, com ou sem irmãos) e a morosidade do processo judicial para a adoção,
atrelado às dificuldades inerentes de trazer um infante a um lar diferente, faz
com que muitas pessoas desistam do procedimento legal de adoção.
É neste particular
que se insere a adoção à brasileira, ou adoção ilegal. Essa modalidade de
adoção é definida pelo ato no qual os genitores ou família biológica entrega a
criança a um indivíduo estranho, o qual, por sua vez, registra a criança como
sendo sua filha biológica. Essa conduta, além de não regulada pelo ECA, é
expressamente vedada pelo Código Penal:
Parto
suposto. Supressão ou alteração de direito inerente ao estado civil de
recém-nascido
Art. 242 - Dar parto alheio como próprio; registrar como seu
o filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou
alterando direito inerente ao estado civil:
Pena - reclusão, de dois a seis anos.
Parágrafo único - Se o crime é praticado por motivo de
reconhecida nobreza:
Pena - detenção, de um a dois anos, podendo o juiz deixar de
aplicar a pena.
Mesmo com a tipificação penal, muitos pais
optam por esse caminho. Isso porque, como um dos motivos, em âmbito social tal
modalidade de adoção não é visto como algo maléfico. Pode-se argumentar que até
o dispositivo penal entende dessa maneira, tendo em vista que, verificado ser
por causa nobre, a pena reduz ou não aplicada, de acordo com o juízo do
magistrado. Desta feita, mais do que importante verificar como entendem os
tribunais pátrios quanto a esta questão, uma vez que a prática é socialmente
aceita, mas tipificada pelo Código Penal.
Os tribunais
decidem sob a égide do princípio de que deve prevalecer o melhor interesse do
menor, valorizando o bem-estar do adotado em detrimento da formalidade penal. A
exemplo:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE
ADOÇÃO. MENOR QUE ESTÁ SOB A GUARDA FÁTICA DOS AUTORES DESDE O NASCIMENTO.
ARREPENDIMENTO MATERNO. ADOÇÃO À BRASILEIRA. VINCULO AFETIVO CONSOLIDADO.
MELHOR INTERESSE E PROTEÇÃO INTEGRAL À CRIANÇA. Não merece reparo a decisão que
destituiu o poder familiar, e concedeu a adoção do menor, que convive com os autores
desde tenra idade. Em que pese o arrependimento materno, o infante, atualmente
com 5 anos de idade, está adaptado à família adotante, reconhece-os como pai e
mãe, já consolidado o vínculo afetivo. Manutenção
deste arranjo familiar, considerando o melhor interesse da criança. RECURSO
DESPROVIDO. (TJ-RS - AC: 70062283361 RS, Relator: Liselena Schifino Robles
Ribeiro, Data de Julgamento: 26/11/2014, Sétima Câmara Cível, Data de
Publicação: Diário da Justiça do dia 28/11/2014). (nosso grifo).
O melhor interesse
da criança, como sustentáculo da dignidade da pessoa humana, prevalece. É uma
constatação óbvia: ora, se a criança está acostumada com os adotantes (mesmo
colocado como filho biológico no registro), e não há motivo para destituição do
poder familiar, o melhor interesse da criança é permanecer nessa família, não
ir a um abrigo ou retornar a família biológica que não o quis anteriormente.
III
- ADOÇÃO INTUITU PERSONAE
Embora possa se
assemelhar com a adoção à brasileira, com ela a adoção intuito personae não se confunde. A adoção intuitu personae é assim definida por Suely Mitie Kusano:
A adoção em que o adotante é previamente indicado por
manifestação de vontade da mãe ou dos pais biológicos ou, não os havendo, dos
responsáveis legais quando apresentado o consentimento exigido […] e, por isso,
autorizada a não observância da ordem cronológica do cadastro de adotantes.[4]
A diferença entre
essa modalidade de adoção para a adoção à brasileira é tênue. A adoção intuitu personae tem interferência
estatal, "que verificará se a família pretendente possui mesmo condições
de propiciar àquela criança seu pleno desenvolvimento".[5] A
adoção à brasileira há esquivo do Estado, registrando-se a criança como sua
quando não a é. Nesse sentido, outra diferença é que a adoção intuitu personae, por ser efetivada pelo
Judiciário, faz com que toda a linha
cronológica do infante fique resguardada, podendo ele, querendo, buscar suas
origens biológicas -
algo que não ocorre na adoção à brasileira.
Antes da Lei n.
12.010/09, havia vácuo legislativo quanto a adoção intuitu personae, de modo que o Judiciário, em geral, deferia tal
adoção para casos variados. No entanto, com a edição da Lei, o ECA passou a ter
em seu art. 50, § 13º, lista taxativa de possibilidades para tal modalidade:
§ 13. Somente poderá ser deferida adoção em favor de
candidato domiciliado no Brasil não cadastrado previamente nos termos desta Lei
quando:
I - se tratar de pedido de adoção
unilateral;
II - for formulada por parente com o
qual a criança ou adolescente mantenha vínculos de afinidade e afetividade;
III - oriundo o pedido de quem detém a
tutela ou guarda legal de criança maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde
que o lapso de tempo de convivência comprove a fixação de laços de afinidade e
afetividade, e não seja constatada a ocorrência de má-fé ou qualquer das
situações previstas nos arts. 237 ou 238 desta Lei.
Sendo assim, outra
diferença: esse tipo de adoção, quando preenchidos algum desses requisitos, é
legal, ao passo que a adoção à brasileira não é. Somente nessas hipóteses a
adoção intuitu personae é permitida
pelo ordenamento jurídico pátrio. Do contrário, torna-se ilegal e responde pelo
crime previsto no art. 242 do Código Penal, anteriormente citado.
No entanto, assim
como na adoção à brasileira, os tribunais brasileiros flexibilizam tal regra em
virtude do melhor interesse da criança.
CIVIL. FAMÍLIA. GUARDA
PROVISÓRIA. COMÉRCIO DE MENOR. INEXISTENTE. FAMÍLIA AFETIVA. INTERESSE SUPERIOR
DO MENOR. OBSERVÂNCIA DA LISTA DE ADOÇÃO. - Mesmo em havendo aparente quebra na
lista de adoção, é desaconselhável remover criança que se encontra, desde os
primeiros dias de vida e por mais de dois anos, sob a guarda de pais afetivos. A autoridade da lista cede, em tal circunstância,
ao superior interesse da criança (ECA, Art. 6º). (STJ - REsp: 837324 RS
2006/0073228-3, Relator: Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, Data de Julgamento:
18/10/2007, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 31/10/2007 p. 325). (grifo nosso).
RECURSO ESPECIAL - AFERIÇÃO DA
PREVALÊNCIA ENTRE O CADASTRO DE ADOTANTES E A ADOÇÃO INTUITU PERSONAE -
APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DO MENOR - VEROSSÍMIL
ESTABELECIMENTO DE VÍNCULO AFETIVO DA MENOR COM O CASAL DE ADOTANTES NÃO
CADASTRADOS - PERMANÊNCIA DA CRIANÇA DURANTE OS PRIMEIROS OITO MESES DE VIDA -
TRÁFICO DE CRIANÇA - NÃO VERIFICAÇÃO - FATOS QUE, POR SI, NÃO DENOTAM A PRÁTICA
DE ILÍCITO - RECURSO ESPECIAL PROVIDO. I - A
observância do cadastro de adotantes, vale dizer, a preferência das pessoas
cronologicamente cadastradas para adotar determinada criança não é absoluta.
Excepciona-se tal regramento, em observância ao princípio do melhor interesse
do menor, basilar e norteador de todo o sistema protecionista do menor, na
hipótese de existir vínculo afetivo entre a criança e o pretendente à adoção,
ainda que este não se encontre sequer cadastrado no referido registro; (...).
(STJ - REsp: 1172067 MG 2009/0052962-4, Relator: Ministro MASSAMI UYEDA, Data
de Julgamento: 18/03/2010, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe
14/04/2010). (grifo nosso).
Incontroverso,
novamente, que a formalidade da lei não prevalece em sopesamento com o melhor
interesse da criança, não importando qual a modalidade de adoção.
IV
- CONCLUSÃO
A adoção é assunto sensível
ao ordenamento jurídico brasileiro. Neste diapasão, o assunto fora regulado
extensivamente pelos diplomas privados, concentrado-se, especialmente, no
Estatuto da Criança e do Adolescente. Referida Lei dispõe analiticamente acerca
dos requisitos e procedimentos para a adoção. Em que pese ser necessário
tamanha proteção, tendo em vista os perigos de comércio e tráfico de menores,
isso não esconde que o processo para adoção no Brasil - onde há mais pretendentes que
crianças - é moroso e complicado, ainda
que existam órgãos municipais, estaduais e federais coordenados para efetivação
da adoção.
Isso faz com que
muitas pessoas sigam caminhos não convencionais, quando não ilegais, para
adotar uma criança. A adoção à brasileira, por exemplo, embora ilegal, tem esse
nome exatamente por ser prática comum no país: registrar como filho seu criança
adotada sem passar pelo Cadastro de Adoção. A adoção intuitu personae, embora tenha três possibilidades em que é
permitido, é outro caminho que os adultos tomam para driblar os processos
formais de adoção. Ambos acabam, por vezes, ser ilegais. No entanto, viu-se que
o princípio do melhor interesse da criança acaba por ser mandamento imperioso
para os tribunais pátrios, de modo a relegar a formalidade da lei. O melhor
interesse da criança, assim, sendo o fim a ser atingido por todo ordenamento
voltado à criança e ao adolescente, é o centro de toda a discussão.
[1] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil
brasileiro: direito de família. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 6. p.
337.
[2] Fora revogado todo o capítulo
da adoção do Código (art. 1.618 a 1.629), restando apenas os arts. 1.618 e
1.619, que dizem: Art. 1.618.
A adoção de crianças e adolescentes será deferida na forma prevista pela Lei n o 8.069,
de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente; Art. 1.619. A adoção de maiores de 18 (dezoito) anos
dependerá da assistência efetiva do poder público e de sentença constitutiva,
aplicando-se, no que couber, as regras gerais da Lei nº 8.069, de 13 de julho de
1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente.
[3] Dados retirados em 12/05/2020
do site https://www.cnj.jus.br/cnanovo/pages/publico/index.jsf
[4] KUSANO, Suely Mitie. Adoção intuitu personae. Tese
(Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006.
f. 62. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp009295.pdf>.
[5] Jaster, Winderson. www.advogadofamiliacuritiba.com.br