BEM DE FAMÍLIA

1.      INTRODUÇÃO

 

Ainda que a penhora seja procedimento fundamental nos processos de execução, vez que é ela que inicia a apreensão dos bens do devedor para que se promova a satisfação do crédito, o ordenamento jurídico não possibilita que cogitemos uma aplicação irrestrita deste instituto.

Neste sentido, foram trazidos pela doutrina e pela legislação brasileira os chamados bens de família, responsáveis por imporem tais limites à penhora. A existência deste instituto partiu do pressuposto, em síntese, de que a existência de um patrimônio mínimo é instrumento fundamental para o desenvolvimento integral da pessoa humana, devendo ele ser garantido até mesmo a eventuais devedores.

Buscou-se, com ele, o equilíbrio entre os interesses envolvidos da recuperação de crédito na medida em que retirou determinados bens da órbita de executoriedade e, ao mesmo tempo, manteve o direito material de crédito.

Justamente para que se mantenha tal equilíbrio, entretanto, exige-se uma clara definição do que compreenderia os bens de família, das suas hipóteses de aplicação e, por fim, das exceções à impenhorabilidade, os quais serão estudados ao longo do presente artigo.

 

2.      DA DEFINIÇAO DE BEM DE FAMÍLIA

 

Ao tratar do tema, o Código Civil de 2002, em seu artigo 1.712, define que “o bem de família consistirá em prédio residencial urbano ou rural, com suas pertenças e acessórios, destinando-se em ambos os casos a domicílio familiar, e poderá abranger valores mobiliários, cuja renda será aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família”.

Por sua vez, o artigo 1º da Lei nº 8.009/90, que também trata do assunto, vai mais além. Aponta seu parágrafo único para o fato de o bem de família compreender sua “construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados”.

Em outras palavras, por mais dívidas que o indivíduo faça, o imóvel que este utilize para sua moradia estará – em regra – a salvo de penhora por qualquer tipo de dívida.

 

3.      DA DISTINÇÃO ENTRE BEM DE FAMÍLIA VOLUNTÁRIO E BEM DE FAMÍLIA LEGAL

 

Ainda anteriormente a um aprofundamento sobre o tema, necessário se faz apontar para a distinção entre as duas espécies coexistentes do bem de família.

Previsto entre os artigos 1.711 a 1.722 do Código Civil, o bem de família voluntário é aquele que assim é declarado por atitude positiva do proprietário do bem. Exige-se, para tanto, a propriedade do bem por parte do instituidor, a destinação específica de moradia da família e valor que não ultrapasse 1/3 do patrimônio líquido total do instituidor ao tempo da instituição. O procedimento para a instituição do bem de família voluntário é feito por escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis

Por sua vez, o chamado bem de família legal (ou involuntário) é aquele que está previsto na Lei nº 8.009/90 e constitui-se independentemente da iniciativa do proprietário do bem, podendo ser suscitado a qualquer momento e por qualquer indivíduo, desde que preenchidos os requisitos da lei.

Na medida em que esta breve exposição foi capaz de apresentar suficientemente bem o tema do bem de família voluntário, dar-se-á maior importância, no seguimento deste trabalho, ao bem de família legal.

 

4.      DO ALCANCE DO BEM DE FAMÍLIA LEGAL

 

Do que se extrai da inteligência da Lei nº 8.009/90, responsável por instituir o bem de família legal, resta evidente que as entidades previstas expressamente no artigo 226 da Constituição Federal – casamento, união estável e família monoparental – têm o imóvel utilizado para sua residência a salvo.

Todavia, entende-se que não somente estes merecem a proteção do instituto do bem de família. Também as novas entidades familiares existentes, independentemente de estado civil, estão abarcadas pela previsão legal[1], razão pela qual se diz que a interpretação do dispositivo deve ser realizada da forma mais ampla possível e que haverá família sob diversas formas.

Importante mencionar, ainda, o entendimento de que o imóvel considerado bem de família pode até mesmo ser objeto de contrato de locação, mantendo inalterada a sua impenhorabilidade desde que a respectiva renda da locação seja aplicada na subsistência ou na moradia do devedor e de sua família[2].

                                              

5.      DAS EXCEÇÕES À IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA

 

A já apresentada Lei nº 8.009/90 traz em seus artigos 2º, 3º e 4º, de forma expressa e taxativa, as hipóteses em que os bens de família poderão ser penhorados.

O caput do artigo 2º diz respeito à possibilidade de penhora dos “veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos”. Em síntese, demonstra este dispositivo a intenção do legislador de excluir deste instituto os bens tidos como supérfluos e/ou que não são necessários à dignidade da família. Há que se fazer, aqui, a ressalva referente aos instrumentos necessários ao exercício da profissão. Um táxi, por exemplo, atingiria o escopo da lei de manter a dignidade do grupo familiar.

O inciso II do artigo 3º, por sua vez, diz respeito à possibilidade de penhora de “crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato”. Trata-se de um simples e óbvio desdobramento do princípio da boa-fé, em um repúdio ao enriquecimento ilícito. Caso não existisse esta hipótese, indivíduos que não possuem patrimônio poderiam assumir dívidas com as quais são incapazes de arcar para a construção de bem de família e, ao fim, se verem livres da necessidade de imediatamente quitar tais valores, vez que o próprio e agora único bem seria impenhorável.

Fundamental também se conferir destaque ao inciso III do artigo 3º, que confere aos créditos alimentícios um grau de importância mais elevado que a da proteção do bem de família. Isto se dá, por óbvio, pelo fato de os créditos alimentícios visarem à sobrevivência direta e imediata do que necessita dos alimentos. Importa ressaltar, ainda, que não serão executados valores correspondentes aos direitos do coproprietário em casos de união estável ou conjugal.

O inciso IV do artigo 3º permite também a penhora do bem de família caso a dívida seja advinda de “impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições” em função do próprio imóvel familiar.

Por sua vez, o inciso V do artigo 3º diz respeito à “execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar”. Em síntese, trata-se de hipótese que guarda relação com a segurança jurídica.

Já o inciso VI do mesmo artigo determina serem penhoráveis os bens frutos de “crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens”. Trata-se, por certo, repúdio à prática de ato ilícito.

Há que se trazer, ainda, a mais polêmica possibilidade de penhora de bens de família: o inciso VII do artigo 3º exclui esta garantia caso o crédito advenha de “obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação”. Trata-se de uma escolha política do legislador de privilegiar a segurança do mercado imobiliário, vez que a costumeira prática das imobiliárias de exigirem fiador seria extremamente prejudicada caso todos os que se dispusessem para tal fossem obrigados a possuir mais de um imóvel em seu nome. Fator, este, que poderia impossibilitar até mesmo que cidadãos em situação financeira prejudicada conseguissem pactuar um aluguel ante à dificuldade de conseguir um fiador ou de oferecer qualquer outra forma de garantia ao locador. Contudo, em junho de 2018, no Recurso Extraordinário 605.709, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu que em se tratando de garantia pessoal (fiança) para imóvel comercial, inaplicável a penhora sobre o bem de família.

Por último, há que se apontar a hipótese de que um indivíduo, sabendo de sua insolvência, adquira “de má-fé imóvel mais valioso para transferir a residência familiar, desfazendo-se ou não da moradia antiga”. Mais uma vez, o legislador repudiou a má-fé e a fraude contra credores ao possibilitar a penhora de bens de família que se enquadrem nesta específica situação.

[1] STJ - Súmula 364: O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas.

[2] STJ - Súmula 486: É impenhorável o único imóvel residencial do devedor que esteja locado a terceiros, desde que a renda obtida com a locação seja revertida para a subsistência ou a moradia da sua família.