O DIREITO DE FAMÍLIA E SUCESSÕES MODERNO A PARTIR DO CASO DE GUGU LIBERATO

O DIREITO DE FAMÍLIA E SUCESSÕES MODERNO A PARTIR DO CASO DE GUGU LIBERATO

WINDERSON JASTER, especialista em Direito de Família e Sucessões, Direito Imobiliário e Direito Aplicado na Escola de Magistratura do Estado do Paraná 


RESUMO: O presente informativo tem como objetivo discutir questões sobre o Direito de Família e o Direito das Sucessões que foram levantadas a partir do falecimento do ex-apresentador Gugu Liberato. Tendo como fio condutor o caso de Gugu, refletir-se-á o instituto da União Estável, seus requisitos e quais suas repercussões para a sucessão através de teses firmadas pelo STF. Também, ver-se-á a possibilidade de afastamento da União Estável por meio de negócio jurídico. Por fim, observar-se-á se juridicamente é possível haver famílias simultâneas e, igualmente, quais seriam as consequências na sucessão de bens.

Palavras-chave: Gugu Liberato; união estável; sucessões; uniões estáveis simultâneas.

Sumário: I. Introdução; II. União estável e repercussões sucessórias: Gugu Liberato e Rose Miriam; III. Uniões estáveis simultâneas ou paralelas (famílias simultâneas); IV. Conclusão.


I - INTRODUÇÃO

O falecimento do apresentador Gugu Liberato, no final de 2019, além de gerar grande comoção, trouxe aos noticiários uma grande briga judicial entre aqueles que querem a sua parte na herança do ex-apresentador. O caso, em segredo de justiça, levanta diversas questões sobre o Direito de Família e o Direito Sucessório que ainda não estão consolidadas ao mundo jurídico. São perguntas as quais o presente artigo se propõe, sinteticamente, entre outras, a responder: qual é o conceito jurídico de família atualmente?; a união estável pode ser afastada por testamento?; há a possibilidade de uniões estáveis paralelas ou simultâneas; quais as implicações para a sucessão dos bens? Desde já, faz-se a ressalva de que não se pretende analisar o caso do Gugu em si, mas utilizá-lo como fio condutor do artigo para debater as questões controversas no Direito de Família e Sucessório que seu falecimento trouxe à baila.

II - UNIÃO ESTÁVEL  E REPERCUSSÕES SUCESSÓRIAS: GUGU E ROSE MIRIAM

Pelas informações trazidas à imprensa, Gugu, em 2011, redigiu testamento  no qual excluiu da herança sua suposta companheira, Rose Miriam, mãe biológica de seus três filhos, uma vez que não haveria união estável entre eles, mas apenas um "contrato para criação de filhos" (2011) - essa é a tese defendida pelos familiares próximos de Gugu. Por outro lado, ao recorrer à justiça para garantir seus direitos, Rose Miriam afirma que havia união estável entre os dois por quase duas décadas e, portanto, teria direito a meação e a sucessão - é o que o público em geral vislumbrava, uma vez que os viam como família, aparecendo juntos em capas de revista, por exemplo.
Como apontado anteriormente, não se discute neste informativo as questões de fato, ou seja, se havia ou não união estável entre eles. O que se quer debater é quais os efeitos jurídicos para cada uma dessas possibilidades para fins sucessórios (estar ou não em união estável), bem como refletir se há a possibilidade de exclusão da companheira via testamento, ainda que fosse comprovada a união estável.
A união estável, ademais de admitida como entidade familiar pela Constituição (art. 226, §3º), é regulada pelo Código Civil como a relação entre duas pessoas, contínua, durável e com o objetivo de constituir família (art. 1.723). Percebe-se que os requisitos para a formação de união estável, aparte a relação entre duas pessoas, são bastante subjetivas.
O Código não expressa o que se quer dizer por contínua, durável e objetivo de constituir família. Em especial a este último requisito, não pode ser mais interpretado com a mesma concepção dos legisladores de família, qual seja, o casal heteronormativo, isto é, um homem e uma mulher, com filhos biológicos. Essa visão está superada, basta lembrar da admissão de família homoafetiva (ADI 4277 e ADPF 132) e as recentes discussões acerca dos animais não humanos como integrantes da família. Assim, não há um conceito fechado de família, estando aberto a certa interpretação.
Para fins sucessórios, a união estável, em 2017, foi equiparada ao casamento pelo STF, não podendo ter distinção nos regimes sucessórios entre os dois (declarando o art. 1.790 do CC/02 inconstitucional).  Dessa decisão, surgem duas correntes de interpretação: (i) a que entende que os companheiros são herdeiros necessários, bem como tem direito a meação; e (ii) os que entendem que não se torna herdeiro necessário, nem tem direito à meação.
A primeira vertente compreende que, com a decisão do STF, o companheiro se equivale ao cônjuge e, portanto, se submete as mesmas regras sucessórias como se iguais fossem. Assim, teria direito a meação (desde que não haja, na união estável, acordo de separação total de bens) e teria direito a legítima, sendo herdeiro necessário.
A segunda vertente, entende o contrário. A decisão do STF se limita às regras relativas a concorrência sucessória e no cálculo do quinhão hereditário, a fim de que os companheiros não fiquem em desvantagem contra os colaterais. A decisão não faz do companheiro herdeiro necessário, tampouco eleva a sua posição ao de cônjuge.  Desse modo, não se teria direito a meação, eis que isso é característica dos casamentos, bem como não teria direito a legítima, já que não é herdeira necessária. Nesse sentido, o convivente apenas teria parte da herança se assim convencionarem o casal. Pela mesma lógica, poderia ser afastado da sucessão pelo autor da herança, desde que este redija testamento com todos os seus bens e não contemple o companheiro.
Assim, resta discutir se um negócio jurídico entre as partes é capaz de afastar o reconhecimento de união estável - como tentou o "contrato para criação de filhos". No caso em comento, o juiz de 1º grau reconheceu a união estável, arbitrando uma pensão alimentícia de R$ 100.000,00 a Rose Miriam. Em instância superior, tal decisão foi cassada, pautando-se no contrato supramencionado, não reconhecendo a união estável. Ressalta-se que não é uma decisão definitiva ainda.
A união estável não é considerada um negócio jurídico, cuja existência se daria pela vontade das partes. Ela é, em realidade, vista como um fato, de modo que contrato nenhum - ainda que expressamente diga que não se trata de união estável - pode afastar o reconhecimento deste instituto caso verifique-se a presença dos requisitos estipulados por lei: é um ato-fato jurídico.  Cumpre mencionar que, no caso em tela, isso não significa que, ainda assim, Rose Miriam teria direito a qualquer parcela da herança, mas apenas que o contrato, por si só, não afastaria um possível reconhecimento de união estável entre os dois.
Em síntese, Rose Miriam terá direito ou não a herança de acordo que os tribunais interpretarem a decisão do STF.  Não é possível prever o resultado, mas dois fins possíveis são: (a) reconhecer a união estável, acolhendo-se a primeira vertente, elevando-se o conceito de companheiro ao de cônjuge e, assim, também ter os mesmos direitos, qual seja, o da meação e parte da legítima; (b) reconhecer a união estável, mas acolher a segunda vertente, de modo que não se teria direito a meação (por não ser cônjuge), nem a legítima (por não ser herdeira necessária), nem parte dos outros 50% dos bens do Gugu (por ter sido afastada do testamento); (c) não reconhecer a união estável e, portanto, não importando qual vertente se utilizar, não ter direito à meação e nem a herança.

III - UNIÕES ESTÁVEIS SIMULTÂNEAS OU PARALELAS (FAMÍLIAS SIMULTÂNEAS)

A novela do caso Gugu, no entanto, ganhou outro episódio, cujas repercussões jurídicas são tão polêmicas quanto o direito à herança de Rose Miriam: Thiago Salvático, chef de cozinha, afirma ter sido companheiro de Gugu por oito ano, requerendo em juízo o reconhecimento de sua união estável e, então, parcela da herança. Novamente, não cabe a este artigo discutir se estão presentes, na relação entre os dois, os requisitos para a configuração da união estável. Apenas se quer expor quais as consequências jurídicas para as possibilidades de reconhecimento ou não da união estável entre eles.
Dessa maneira, questiona-se: é juridicamente possível o reconhecimento de famílias simultâneas? As famílias simultâneas são entendidas pela doutrina como "aquelas constituídas por dois núcleos familiares, sendo que um de seus membros é comum a ambos. A formação pode se dar por um casamento e união estável ou duas ou mais uniões estáveis concomitantemente". 
Embora possa se encontrar decisões, especialmente de primeira instância, que reconheçam uniões estáveis paralelas, a jurisprudência do STJ não admite essa possibilidade.
De acordo com o REsp 1.157.273-RN, não se pode reconhecer a união estável simultânea, porque isso encontraria obstáculo no dever de lealdade, que seria, segundo o julgado, requisito inerente à união estável, especialmente em uma sociedade cujo centro das relações afetivas se sustenta na monogamia. Assim, nos temos do acórdão, "além de um dever jurídico, a fidelidade é requisito natural".
Ainda, conforme o REsp, atribuir a esse novos arranjos familiares (ou seja, nesse caso, o suposto segundo relacionamento simultâneo) o caráter de união estável seria violar o art. 1.727 do CC,  de modo que somente poderiam se constituir em concubinato. Em tempo, a relatora dessa REsp, Min. Nancy Andrighi, em seu voto, trouxe à tona o RE 397.762/BA julgado pelo STF, no qual o colegiado entendeu que, quando muito, o segundo relacionamento resultaria em sociedade de fato. O Min. Roberto Lewandowski, no referido RE, ainda diferenciou concubinato como "compartilhar o leito", ao passo que a união estável seria "compartilhar a vida".
Em síntese, o que se dá pra concluir? Conclui-se que, para o ordenamento jurídico brasileiro, sob a égide do REsp 1.157.273-RN, não há a possibilidade de uniões estáveis simultâneas, uma vez que isso violaria o dever de lealdade - indissociável da união estável -, bem como o art. 1.727 do Código Civil. Assim, caso reconhecida a união estável de Gugu e Rose Miriam, não haveria como reconhecer também a união estável entre Gugu e Thiago Salvático, mas apenas concubinato, ou, no máximo, sociedade de fato.
Para fins sucessórios, quais são as implicações? A principal implicação é que, a priori, Thiago Salvático não teria direito algum a herança de Gugu. Independentemente da discussões do tópico 2, não reconhecida a união estável, não teria direito à meação, à legítima, à nada (uma vez que também não foi incluído no testamento). Destarte, também com base no REsp 1.157.273-RN, caso tenha interesse na partilha de bens de Gugu, Thiago Salvático deverá adentrar com ação própria em que comprove esforço comum para a obtenção do patrimônio requerido na partilha.
Na eventual hipótese de não reconhecida a união estável entre Gugu e Rose Miriam, mas reconhecida entre Gugu e Thiago Salvático, recai-se, novamente, na discussão realizada no item 2 deste artigo.

IV - CONCLUSÃO

O presente artigo se esforçou para, sinteticamente, expor várias questões jurídicas polêmicas acerca do Direito de Família e do Direito Sucessório que foram ventiladas a partir do falecimento do ex-apresentador Gugu Liberato.
Sem adentrar nas discussões fáticas do caso em si, observou-se o instituto da União Estável no ordenamento jurídico brasileiro, elevado como entidade familiar pela CR/88. Viu-se seus requisitos e quais as consequências de seu reconhecimento ou não para a sucessão de bens do falecido. Sob a ótica das teses 498 e 809 do STF, evidenciou-se que há duas linhas interpretativas: (i) a que eleva a figura do companheiro a de cônjuge, de modo que os direitos sucessórios, como a meação, seriam idênticos; e (ii) a que entende que a decisão do STF se limita às regras de concorrência e do cálculo dos quinhões hereditários, a fim de que o convivente não fiquem em desvantagem contra os herdeiros colaterais.
Depois, verificou-se a impossibilidade de afastamento da união estável por meio de contrato, uma vez que tal instituto não tem natureza de negócio jurídico, mas de ato-fato jurídico. Presentes os requisitos estipulados por lei para a configuração de união estável, ela deve ser reconhecida independentemente de negócio jurídico que diga o contrário. A partir das conclusões tiradas, hipoteticamente se vislumbrou alguns resultados possíveis na sucessão da herança de Gugu.
Finalmente, estudou-se as famílias simultâneas, a fim de se entender se no ordenamento jurídico brasileiro isso é aceito. Não o é, conforme decisão do STJ analisada, de modo que impossível se haver duas uniões estáveis simultâneas, tendo, por óbvio, tal decisão implicações no Direito Sucessório.
A novela da herança de Gugu Liberato certamente terá novos episódios, mas, desde já, é possível enxergar o quão polêmica pode ser o Direito de Família e Sucessório moderno, tendo em vista a mutação constante de seus institutos que tenta se adequar às mudanças do conceito de família da realidade social.